eu e eles

 

Houve alguns dos meus mortos que se foram esfumando e que se transformaram aos poucos numa nostálgica e nebulosa recordação, não mais que uma abstracta sensação de perda, sem identidade já, eu tentando-os recuperar com o que eles deveriam ser mas já não eram.

Mas outros houve em que as recordações não se desvaneceram, porque, mais do que as suas memórias, foram eles que me entranharam. O seu luto, aquela dor brutal gritando uma explicação que nunca viria, era afinal o processo – sei-o agora – com que integravam o homem que eu iria ser no dia seguinte e depois, e para sempre. É aí, dentro de nós, não pelas recordações que deles guardamos, mas pelo que passamos despercebidamente a ser deles, que as almas daqueles que nos tocam verdadeiramente na vida, passam a viver.

Esses são os meus mortos. Até a solidão que por vezes sinto, tão opaca e insuperável apesar de rodeada de gente, até ela me traz a exultação de os pressentir por ali. Sentirmo-nos mais amargurados, sabermo-nos mais insuficientes, crermo-nos mais frágeis, tudo isso não advém da acentuação de uma espécie de infelicidade que por vezes parece que pretendemos vitimar em nós. Nas alegrias, mas também na adversidade, tudo se torna mais denso, porque deles carregamos em nós uma parte que vai muito para além da imponderabilidade das memórias.

É assim que agora nós vamos caminhando pelo mundo e pela vida, eles em mim, eu fazendo-me por nos trazer a todos emprestados neste meu corpo estafado. Eu sou um homem bom e vivo rodeado de bons homens e por isso sei que um dia virá que serei eu que irei habitar neles, e queira eu que o façam eles com o mesmo orgulho e ventura com que hoje trago comigo os meus mortos. Se duvidais do que aqui digo olhai lá para trás onde estão aqueles que admira(ra)m, como eu o fiz e faço com o meu pai: notarão neles algo que está para além do imaterial das memórias, algo quase tangível, uma marca quase desapercebida mas indelével. São eles, aqui mesmo, agora, a marcarem no volver dos dias o trilho da nossa vida.

 

Nota posterior: Ontem foi o meu avô Zé quem fez anos. O meu avô Zé já morreu há pelo menos 25 anos, mas ainda ontem recebi um SMS da minha mãe a recordar o seu aniversário: “anos do avô Zé”. Na semana passada foram os “anos do avô João”. Sabendo como eu sou esquecido lança-me estes alertas com um carinho e um rigor admiráveis, que eu intimamente agradeço. Faz isso para me recordar das efemérides de todos os membros da família, e sublinho: todos!, que não apenas os ainda entre-nós. Adiciono esta nota porque me parece a demonstração lacónica de quem melhor que eu sabe que não é o traço da morte que nos deve fazer diferenciar a festa dos afectos.  

 


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