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o moço e a besta

Voltava todos os dias com o fechar do bar, já noite lançada, onde se emprestava para juntar algum dinheiro que desse desafogo aos gastos das coisas da praia e das borgas nocturnas nesses tempos de verão. Embora íngreme, o declive que tinha de vencer neste regresso era cumprido de bicicleta, que isso sempre melhor que o fazer caminhando.

A última ladeira fazia-se com a chegada, já no bairro onde morava. Era uma ruela estreita, sem outro destino que não o dos seus moradores e que morria num pequeno largo, num plano mais elevado, onde se encostava a sua casa. Os carros estacionavam ao longo daquela rampa, de um dos lados apenas e ainda assim com duas rodas sobre o passeio para espaço de passagem.

Embora tivesse toda a largura da estrada desimpedida galgava a subida pela vareda que se formava entre os carros estacionados e os muros das casas. Vinha nesse jogo desde que partira e não seria agora, quase dando-o por ganho, que desistiria. O punho da bicicleta e os retrovisores dos automóveis, à mesma cota, quase raspavam e de todas as vezes, com um jeito de rins, induzia um ligeiro arco na trajectória para que corrigisse o embate já próximo, quase fatal. Exigia concentração, que a tarefa não era fácil, mas nisso se constituía o desafio.

Já a meio, com o êxito parecendo óbvio, acabou por entrechocar com um dos retrovisores, o suficiente para o desequilibrar. Parado, perdido o desafio, com os pés derrotadamente pousados no chão, olhava para o raspão na mão sem conseguir disfarçar alguma irritação. Foi assim que reparou na porta do carro, entreaberta. Quando a fechou, com estrondo, foi mais no pedir culpas do que na recomendação do gesto.

Preparava-se agora para reiniciar caminho galgando os últimos metros com o amargo da derrota mas interrompeu-se, que sem ter ainda seguido já parecia não estar parado. E contudo, o carro, mexia-se. Lenta e suavemente, quase de forma imperceptível, só se notava ali junto ao punho da bicicleta ao lado do qual se notava o movimento, primeiro pela pega da porta, depois já o retrovisor, num movimento mole e contínuo a deixar-se seguir para trás.

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