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Terapia automobilística (1/2)

Uns dizem que com o avançar da idade nos tornamos mais impacientes. Nada disso, tornamo-nos apenas mais avaros com o tempo. Quando temos um saco de rebuçados a menos de meio não gostamos que alguém lá meta a mão sem pedir licença.

Nesta segunda-feira à noite não foi por isso com grande disposição que ali cheguei, sem saber tão-pouco se para ali havia sido convocado para punição ou terapia, a medir-me assim entre o resignado e o expectante já que a segunda alternativa sempre traria algum desagravo. Mas antes de entrar já levava comigo bom conselho: se arranjares um carro para os teus filhos, dá-o por completo, não o deixes registado em teu nome. E que a laxação acabe aqui, porque pior que isso seria receberes depois as multas de excesso de velocidade, pagares e chutares para canto.

E portanto aqui estou, agora já na sala, ou melhor, num esconso gabinete, por culpa alheia. São doze os desgraçados a desenroscarem-se por ali adentro, pedindo licença de passagem pelo friso de espaço entre a mesa e as paredes, na atrapalhação de nem um lugar encontrarem para pousar os casacos, os gestos lentos e submissos de quem caminha para um eminente processo por gazeamento, a acantonarem-se ao redor da mesa. Uma exígua mesa de reuniões atravancada num gabinete diminuto, repita-se. Depois, entre pausas, se faz favores, pausas outra vez, tosses fininhas e outras vírgulas de matar o tempo, conforme ia viajando a vista por eles, um por um, foi-se aliviando de algum modo o desagrado por ali estar.

Rédeas nas mãos, logo firme a entrar, a jovem formadora. Encantadora na sua função, cândida, com um olhar míope e estudioso por detrás das lentes garrafais. Psicóloga, não tenho dúvidas. A ela era-lhe dada a absurda missão de punir doze malvados automobilistas, durante quatro noites, naquela sala. Perdão, gabinete. Perdão, consciencializar para novos comportamentos esses tal malvados. Oxalá aquela auréola de serenidade estivesse bem ancorada dentro de si porque, a julgar pelos entretantos, esperava-a espinhosa missão.

No tampo da mesa oval onde nos sentávamos os treze – uma belíssima mesa de madeira se me deixassem chegar-lhe as mãos – estavam espalhados dezenas de recortes de figuras de revistas. Sim, como brincávamos quando andávamos na infantil. E os temas, mais bondosos ou mais impactantes, mais figurativos ou abstractos, eram também os mesmos. E nada mais. Nem um papel para rabiscar, uma caneta, um copo de plástico, uma garrafa de água vá lá, nada. Punição. Tinha-me saído a punição. Agora só me restava por isso tentar desfrutar dela.

E para isso foi-se construindo um cenário promissor. Seguem as apresentações à volta da mesa. Uma hora inteira. Ficámos logo a saber que conversa não iria faltar e que éramos todos exímios condutores, dos que andavam depressa e bem. Mas com segurança, como acentuava o senhor de que não me lembro o nome e que ajudara a sentar à minha esquerda, com 78 anos. Aliás tínhamos todos em comum isso de conduzir impecávelmente mas também contribuir generosamente para uma média de idades que nunca andaria abaixo dos 60. Da absurda unanimidade destas declarações que versavam os nossos dotes automobilísticos e da forma como essas eram, uma por uma, rendilhadas em delirantes episódios, não continha o sorriso a única jovem que fazia excepção à idade, daqueles que ainda se conseguem esconder debaixo do queixo, mas ali amordaçando-o, já no limite, para não virar riso,  e nisso acompanhando-me.

A primeira volta estava dada. Toda a gente descartou à vez o papelinho que escolhera para se identificar e partíamos agora para a última hora. Tenho a convicção absoluta que os meus colegas infractores, sem excepção, carregavam consigo um sorriso malandro enquanto recolhiam o segundo pedaço de papel com que pretenderiam argumentar-se perante a nova questão. E sobre essa pedia então a incorpórea formadora, dela só a voz açucarada e aqueles saltitantes olhinhos perscrutadores, que nos identificássemos como condutores. Ao Idálio – não tenho a certeza do nome, mas seria algo assim, entre a graça do rufia lisboeta e do herói mítico –  viu-o escolher uma foto onde constavam 5 cutelos sobre um fundo branco. A formadora também viu. Levou o indicador aos óculos pretendendo encaixá-los melhor, num gesto desnecessário enquanto frisava o nariz.  Iria vê-la repetir esse tique nervoso inúmeras vezes nessa noite, ainda que só estivéssemos na fase das apresentações.

Ficou também aí confirmado que tinha caído num caldo de terapia de grupo, um exercício que me recolhia à infância, até às actividades pré-primárias de corte e colagem e simultaneamente me fazia sentir num confrangedor encontro dos A.A. – Automobilistas Anónimos, esclareça-se. Em suma, iríamos passar ali 4 longas noites a falar de cada um de nós, à volta da fogueira. E alguns – vou-os identificando – certamente já de chouriço no espeto, enquanto tentarão recrutar mais e mais palavras para poderem continuar a falar de si e aproveitarem a oportunidade para afastarem por umas horas uma presumível solidão. E pela amostra, pelo menos no meu achar e do da jovial rapariga, isso poderia até conter alguns momentos bem risíveis.

Mas isso a correr para quarta-feira que as sevícias por hoje estavam terminadas. Nesta segunda ronda, interrompida, falara apenas metade da mesa, mas eu também não sei escrever nada por metade.


realmente …

Neste espaço guardaram-se muitos recortes da vida familiar. Porque relê-los na posteridade é um exercício saboroso e tantas vezes hilariante, como já o comprovei, não resisto a trazer aqui mais um, mesmo que diferido em alguns anos.

Ter-se-á passado por volta de 2010 e o Francisco teria então uns 18 anos. Já nessa altura reflectia um racional e uma tranquilidade por vezes desconcertantes e sobretudo sem qualquer inclinação genética.

 

Chega a casa já noite, as saudações habituais e remete de seguida em tom de aparente irrelevância:

– Acabaram de me roubar o telemóvel novo.

 – O quê? Como foi isso?

 – Então, estava na paragem do autocarro, para vir para casa e chega um bando daquela malta que eu contei no outro dia que anda sempre a rondar escola. Prái uns dez com granda mau aspecto. E eu foi pedir e dar, nem mugi.

 – Fizeste bem. Mas que chatice!

 – Mas julga que eles ficaram por ali? Entraram depois no autocarro e foi roubar desde a frente até à parte de trás do autocarro, velhinhas, homens, todos os que lá estavam.

 – Sabes lá tu isso …

 – Oh pai, como assim? então, eu vi!

 – Como viste tu? estavas lá com eles?

 – Claro que sim. Eu não lhe disse que estava na paragem à espera do autocarro?

 – Sim, disseste. Mas … olha lá, eles roubam-te e de seguida entras no mesmo autocarro atrás deles?

– E então, acha que eu ainda tinha alguma coisa que eles quisessem?