Entardecer

Caminho agora mais devagar porque já me cansei de tanto correr. Sorrio mais porque já não encontro sentido no que me fazia rir desbragadamente. Vou cada vez mais ignorando o que antes me levava ao descontrolo. Os meus olhos emudecem-se mais vezes, mas já não só pelas coisas tristes. Noutros tempos em que a vida e o corpo me levavam sôfrega e aceleradamente, pensava que envelhecer seria trazer mais cansaço, um faltar de energia que nos ia fazendo mais mansos. Não é. É apenas ela a fazer o tempo mais devagar, a trazê-lo para o nosso passo, agora mais curto e demorado.

Estraguei imensas coisas, atropelei muita gente, magoei-me tantas vezes por coisa nenhuma, sempre nesse correr de chegar mais depressa e mais longe a um lugar qualquer. Agora a vida traz-me menos velocidade, e sem essa vertigem há uma serenidade lenta que acontece. Esse banco onde mais vezes me vou sentando, como quem pausa à beira da estrada, e onde por vezes já consigo ver as cores e os detalhes das coisas que passam por mim e até o sentido das coisas que os outros me querem dizer quando se calam – quem diz que se ouve pior quando aqui chegados, fala simplesmente da acústica, não do escutar. E já consigo olhar para eles quando olham para mim. Mas olhar mesmo. Às vezes admirá-los. Dantes quase só tinha tempo para me admirar a mim.

Envelhecer não é ser mais trôpego e lento. É apenas ir ficando sentado mais vezes e mais demoradamente nesse lugar que a vida agora nos oferece para podermos fazer as pazes connosco e fruir do que outrora não tivemos tempo. Um dia dirão que a minha cabeça já não é o que era e, de lá do fundo dessa pressa, amigos, alertarão até para cuidados médicos. Espero ainda conseguir dizer-lhes para voltarem ao princípio do texto, que o releiam de novo. Talvez venham a perceber que não somos nós a desligar. Estamos simplesmente a deixar-nos ficar mais tempo sentados nessa pedra à beira da estrada. E não há pressa nisso. É só isso. Deixarmo-nos ficar, poder ir indo.


(das coisas que me arrependo de ter escrito no FB)

Tu não choras pelos que partem. Choras porque ficas sem eles. A dor é tua, não deles. Há um estranho mecanismo que nos faz transportar essa pena para eles, como se eles a sofressem, que não exclusivamente nós. E isso, julgá-los em perda, com dor, cerceados do que tinham para viver, seja o que isso for, faz-nos doer muito mais. O luto tornava-se tão mais sofrível se o não fizéssemos, se sentíssemos que apenas tínhamos de enfrentar o nosso sofrimento. Que, fosse qual fosse o caminho que eles haviam trilhado, o tinham cumprido. Mas em nenhum de nós se manifesta essa capacidade de racionalizar a morte. Projectamo-la neles, nos que partem, e deixamos de dominar a nossa dor. Na verdade, nunca a dominaremos.


O tempo, a noite e o mar

Todos nós sabemos que o tempo pode tomar diversas velocidades, conforme as circunstâncias em que dele usufruímos. Ora pode ser enérgico e rotativo, tragando-nos a vida de modo estonteante, aí absolutamente indiferente à nossa condição perecível, como na forma oposta assume uma natureza espessa, uma calmitude geológica, como se assim estar fosse para sempre por ali aprisionar. Estou certo que, ainda que por diferentes circunstâncias, já todos terão sentido esta forma lassa dele fluir. Mas para mim tenho, até porque agora mesmo o volto a experimentar, uma vez mais, que nisso do mundo parar, de todo o tempo dele se entorpecer em nós, nada melhor o representa que um turno da noite calado no bréu do mar. E há nisso uma desconcertante magia, como se assim, fazendo-se o tempo acamado na dormência do oceano, nos quisesse enganar com a eternidade.


Por entre as folhas

(revisão de texto de 18 maio de 2010)

Olhou pela janela, absorto no horizonte, deixando vaguear por lá a falta de inspiração. Pressionou duas vezes o “enter” num tique hesitante de quem ainda procura  o texto de partida.  Desta vez, a pequena faísca que deveria fazer correr agitadamente os dedos pelo teclado tardava. O seu olhar alternava, irrequieto, entre o ecrã em branco e a capa encerada do livro sobre a mesa que olhava com especial atenção. Por fim, ainda vacilante, num ritmo lento e batucado, como se quisesse ver nascer na tela cada caractére, um por um, como se cada letra merecesse uma atenção solene, deixou, lacónico, um  f…i…c…o…a…q…u…i

Lá ao fundo, na assoalhada que confinava com a sala onde acabara de fechar a tampa do portátil, a sua família debruçava-se entusiasticamente sobre um qualquer afazer que tinha espraiado sobre a mesa de jantar. Deixou-se enlear por breves instantes num enternecimento de lágrimas. Não era assim que queria sentir-se e por isso interrompeu-se,  marcial para consigo, erguendo-se e ajeitando a roupa em redor da cintura. Com as duas mãos – era um tomo pesado – agarrou por fim o Dom Quixote ” que tinha à sua frente. Abriu-o pelo meio e começou a desfolhá-lo com agitação. Sabia exactamente em qual dos seus 126 capítulos encontraria o parágrafo que escolhera e apesar da generosa espessura daquela obra não demorou a descobri-lo.

A frase que, depois de aturada pesquisa, meses a fio, havia escolhido, estava agora diante dos seus olhos. Sabia-a de cor, naturalmente. Não apenas as palavras e o sentido que estas lhe davam, mas também os ritmos e os sons soletrados e era tudo isso que o fizera tomar este trecho para seu pardieiro. Como que a ancorá-la, fincava-a com o indicador enquanto voltava a levantar o olhar. Sorriu-lhes, aos seus, uma última vez, de lá do fundo e depois mergulhou exactamente antes do ponto final do parágrafo que escolhera para o acolher! O livro fechou-se com estrondo, por impulso da sua vontade, mas até isso passou despercebido à família. Há muito que se haviam habituado a conceder-lhe a quase imaterialidade em que vivia mergulhado nesse  mundo paralelo da escrita e qualquer sinal da sua presença tornara-se inconspícuo. Mais tarde, quando o procurassem e encontrassem as suas roupas caídas no chão e apesar do insólito de as verem pigmentadas das letras soltas que se haviam desprendido do texto quando nele entrara, nem então achariam isso demasiado estranho, nesse inverosímil a que os habituara.

Um dia alguém iria voltar a desembainhar a obra de Cervantes e, rolando-lhe apressadamente o espesso das páginas com os dedos lambidos, quiçá acabaria por passar pelo parágrafo remoto para onde se exilara. Teria assim a oportunidade para um breve vislumbre, suficiente, do mundo cá fora, para sentir a mornidão do sol sobre a folha onde agora vivia – nenhum outro material absorve mais tépida e suavemente o sol que um bom papel gramado, assim achava ele. Um momento de interregno certamente tão saboroso como aqueles em que, quando ainda vivia aprisionado num corpo inútil,  chegava a casa, desprendia a gravata e viajava pelas suas leituras. Ainda que agora ele fosse o livro e por isso essa comoção deixasse de fazer sentido.

Não fora de ânimo leve que decidira transladar-se para esse universo que acabara de escolher (*) e isso tão mais determinante e irrevogável que simplesmente morrer. Mas não lhe sobravam já dúvidas sobre essa forma de eternidade que escolhera. Jazeria nessa soberba planície literária, caminharia eternamente pelas terras de La Mancha e desfrutaria infinitamente de cada pedaço mágico da mais notável inspiração humana. Sim – assentia de novo para consigo, encostado à vírgula do terceiro parágrafo onde encontrava a doce Dulcineia em vias de se entregar ao seu Cavaleiro da Triste Figura  – ali poderia finalmente respirar a perenidade da sua solidão.

(*) Cervantes deu a seguinte definição à sua própria obra: “orden desordenada (…) de manera que el arte, imitando à la Naturaleza, parece que allí la vence”


desses estranhos dias que o futuro dirá se nos fizeram diferentes

(para arquivo pessoal numa das gavetas desta caixinha de memórias)

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