Monthly Archives: Outubro 2013

os homens e os mares (uma febril auto-reedição)

Quem nunca viveu o mediterrâneo a partir do mar desconhecerá provavelmente algo que marcadamente ele induz em todas as populações que nas suas costas se acomodaram. Ao contrário da face atlântica onde a aspereza do oceano e a grande variação das marés impele as pessoas para uma cota mais segura, no mediterrâneo essa variação quase não existe e a linha de água fica assim quase desvanecida. Este pormenor é de uma importância extrema para a relação que os povos estabeleceram com o mar.

biscayaNas escarpas oceânicas o mar nem sempre é amigo e a distância é algo que se deve manter com ele. Aí cativa o inóspito e entre nós e ele há sempre escarpas que apelam ao épico, ao esforço com que nele mergulhamos, mas também ao distanciamento reverente. Todas as actividades que entrosámos com ele foram sempre cravejadas por actos heróicos, onde guerreámos com a sua ira vezes sem conta, onde lhe aprendemos o respeito pelo seu gigantismo, onde, temerários, nos abandonámos às suas histórias de final imprevisível. E se nos deixámos ir assim,  endoidecidos aventureiros,  oferecidos ao seu destino, é porque assim quisémos também que nos contasse a sua história.

No mediterrâneo tudo é o inverso. A terra é o fim do mar e o mar o seu intuito, a fronteira desvanecida para onde todos os povos se viraram e dela se fizeram depender. A linha da costa é macia, quase imperceptível, e frágil empurra-nos nessa proximidade para o mar como só nesse mar conheço e a história da humanidade confirma. Há uma relação serena com o mar e em vez das grandes conquistas e dos desafios pelo desconhecido, que ocorreram connosco por influência do agreste, a maré, a falta dela, sempre desentaipou um caminho mais fácil, o ponto de partida para outros lugares vizinhos, a alternativa menos árdua do partir.

No mediterrâneo descobre-se, pois nos oceanos conquista-se. E tudo é uma questão de marés, de oscilações, de maior ou menor previsibilidade, de irascibilidade. É assim com os mares e assim também é com os homens que neles habitam. As pessoas também são assim, e digo eu feito marinheiro (que as léguas no mar, ainda que poucas, são mais que aquelas que sou capaz de entender nos homens), as pessoas são como o mar: Tal como os oceanos umas são de intempestivas marés, e nessa oscilação de vontades ora se mostram acessíveis e sedutoras ora lançam estuporados gestos de antipatia e gritos de cólera com que sacodem aqueles a quem no fundo se querem prender; Outras são mais estáveis, mais mansas, mais doces, mais previsíveis e confortantes, são mediterrânicas e por isso delas reconhecemos sempre a linha d’água e nelas deixamos acampar a nossa confiança. Numas pode-se viver na beira das suas margens sem recear que um dia estas nos fujam ou invadam, outras são tormentas permanentes a desafiar a perseverança de quem, ainda que assim, gosta delas .

Eu, se fosse mar, banharia a costa nórdica: que é tal a maré que o que agora é terra não tarda é mar. Abraços inábeis, franjas de água descontroladas, humores sem tino e previsão, marés grandes de mais para o mar que os outros conseguem ter de mim.


Das guerras que ficam por contar

Quando chego a casa já o jantar se havia servido, há muito tempo. Nos dias comuns é a minha mãe quem primeiro chega do trabalho, mais tarde chegará o meu pai e quando finalmente cair a noite já todos nos sentámos à mesa, em família. Hoje faltava eu.

Já ontem tinha chegado atrasado e fui por isso chamado à razão. Agora, olhando para os pratos já empilhados na cozinha, sei que não me espera nada de bom. Mas já estou preparado. Antes, durante as largas horas em que estive escondido na minha trincheira no quintal dos Moreiras pude reflectir demoradamente no assunto e em todas as suas possíveis consequências. É a minha mãe quem me fala agora, diz-me que não compreende como posso achar que eles não ficariam preocupados, que eu tão novo assim e ainda lá fora até tão noite adentro, ela mais de palavras já se vê. O meu pai, o seu olhar – e esse já me bastaria – leva-me à cozinha dependurado nas suas mãos grandes e em duas penadas chega-me a roupa ao pêlo sem mais nada dizer, que nada há para dizer. Lido melhor com ele e assim com isso. Vejo nisso um ponto final e apesar do ardor do correctivo dou-me por tranquilo ao presumir que nada se me aplicará em castigo.

Apresto-me para me retirar, em silêncio. Também eu nada tenho para dizer. Vim sabendo o que me seria devido, resignado já, e por isso abstenho-me de lhes explicar os motivos. Sei que nunca seria capaz de lhes fazer perceber o quão importantes tinham sido as razões do meu atraso. O seu mundo de adultos nunca conceberia como poderia uma brincadeira de todos os dias afastar-me de um compromisso que eu estava farto de saber ser para cumprir em família, para cumprir família. Mas sou ainda um miúdo, e estouvado, dizem, e pouco ponderarei do impacto que isso tem nos nos adultos. Ficaram furiosos de me ver assim, quedo e resignado, amofinado no meu silêncio sem sequer arriscar uma justificação. Quando dou pelo agravo, quando percebo que eles afinal entendem tudo isso como uma afronta, já é tarde demais. Três dias de castigo. e de onde vim herói

Três dias sem rua a seguir ao lanche. De repente tudo se esboroa em mim. Já não me sinto sequer no intervalo da guerra que vou ganhando lá fora e que há dois dias travo por entre os muros dos quintais vizinhos da Rua 5. A metralhadora que serrei e aplainei de um pedaço de porta velha e que depois laboriosamente arredondei com a grosa que tantas vezes vi trabalhar nas mãos do meu pai, acaba por se embaciar de lágrimas em cima do baú de entrada. Subitamente compreendo que acabei de perder a guerra, essa guerra tão importante e prolongada que me vinha tendo como o seu herói. Ninguém lá fora, se contado o sucedido, se comoverá com este meu destino, que as regras são rígidas. Por isso nem ponho por hipótese justificar a minha desistência mais tarde. Nem isso provavelmente ficaria bem a um soldado.

G, a mais nova e mais dada das minhas três irmãs, vem sentar-se ao meu colo. Seco os olhos e é ela quem me faz levantar o olhar de novo. Estão ali quase todos os meus irmãos, mudos, até compadecidos comigo. Compreendo então que se eles existem então há quem saiba que eu não fugi da guerra que travava, que apenas fui impedido de a continuar. Outros, em situação equivalente, não teriam sequer a possibilidade de partilharem o seu orgulho com quem lhes conhecia todas e cada umas das suas desventuras.

Nesse verão, depois do castigo, quase todas as brincadeiras acabariam por ser trocadas pelas descidas endiabradas nos carrinhos de esferas e as guerras por entre quintais rapidamente enterradas naquelas memórias voláteis e irrequietas. E agora eram alguns deles quem me aplaudia e incitava ali dos bordos da pista gizada no alcatrão com pedaços de estuque, à minha passagem.

Muito mais tarde, quando já em adulto me quiseram voltar a pôr a brincar às guerras, eu simplesmente recusei e por isso não me lembro de alguma vez ter voltado ao reboliço das armas e trincheiras. Mas dessa guerra que nunca cheguei a ganhar guardo a percepção dos meus irmãos. Fico a pensar que cada um de nós, por mais distante que possa estar ou parecer estar, será sempre uma parte que conta o que aos outros ficou calado. Nem sempre soubemos e sabemos muito uns dos outros, mas a parte que sabemos é a parte que ficava entre o que aconteceu e a nossa solidão, a parte que mais ninguém saberia contar. Hoje olho para cada um deles e continuo a encontrar-lhes segredos que guardam de mim e das guerras que eu não pude acabar, e fico a pensar – e a pensá-los – na sorte que tivemos em sermos tantos … tantas partes de nós.