Quem nunca viveu o mediterrâneo a partir do mar desconhecerá provavelmente algo que marcadamente ele induz em todas as populações que nas suas costas se acomodaram. Ao contrário da face atlântica onde a aspereza do oceano e a grande variação das marés impele as pessoas para uma cota mais segura, no mediterrâneo essa variação quase não existe e a linha de água fica assim quase desvanecida. Este pormenor é de uma importância extrema para a relação que os povos estabeleceram com o mar.
Nas escarpas oceânicas o mar nem sempre é amigo e a distância é algo que se deve manter com ele. Aí cativa o inóspito e entre nós e ele há sempre escarpas que apelam ao épico, ao esforço com que nele mergulhamos, mas também ao distanciamento reverente. Todas as actividades que entrosámos com ele foram sempre cravejadas por actos heróicos, onde guerreámos com a sua ira vezes sem conta, onde lhe aprendemos o respeito pelo seu gigantismo, onde, temerários, nos abandonámos às suas histórias de final imprevisível. E se nos deixámos ir assim, endoidecidos aventureiros, oferecidos ao seu destino, é porque assim quisémos também que nos contasse a sua história.
No mediterrâneo tudo é o inverso. A terra é o fim do mar e o mar o seu intuito, a fronteira desvanecida para onde todos os povos se viraram e dela se fizeram depender. A linha da costa é macia, quase imperceptível, e frágil empurra-nos nessa proximidade para o mar como só nesse mar conheço e a história da humanidade confirma. Há uma relação serena com o mar e em vez das grandes conquistas e dos desafios pelo desconhecido, que ocorreram connosco por influência do agreste, a maré, a falta dela, sempre desentaipou um caminho mais fácil, o ponto de partida para outros lugares vizinhos, a alternativa menos árdua do partir.
No mediterrâneo descobre-se, pois nos oceanos conquista-se. E tudo é uma questão de marés, de oscilações, de maior ou menor previsibilidade, de irascibilidade. É assim com os mares e assim também é com os homens que neles habitam. As pessoas também são assim, e digo eu feito marinheiro (que as léguas no mar, ainda que poucas, são mais que aquelas que sou capaz de entender nos homens), as pessoas são como o mar: Tal como os oceanos umas são de intempestivas marés, e nessa oscilação de vontades ora se mostram acessíveis e sedutoras ora lançam estuporados gestos de antipatia e gritos de cólera com que sacodem aqueles a quem no fundo se querem prender; Outras são mais estáveis, mais mansas, mais doces, mais previsíveis e confortantes, são mediterrânicas e por isso delas reconhecemos sempre a linha d’água e nelas deixamos acampar a nossa confiança. Numas pode-se viver na beira das suas margens sem recear que um dia estas nos fujam ou invadam, outras são tormentas permanentes a desafiar a perseverança de quem, ainda que assim, gosta delas .
Eu, se fosse mar, banharia a costa nórdica: que é tal a maré que o que agora é terra não tarda é mar. Abraços inábeis, franjas de água descontroladas, humores sem tino e previsão, marés grandes de mais para o mar que os outros conseguem ter de mim.