Monthly Archives: Outubro 2006

140 dias

A 20 de Junho, escrevia isto:

Cada hora é mais uma braçada cansada, lançada a custo, e cada dia o princípio de um plano inclinado que tenho repetidamente de subir. Combato uma ansiedade que nunca julguei poder existir. É uma guerra sem inimigos e cujos golpes se desferem dentro de mim; uma contenda que se trava num território que julgava conhecer e do qual tiraria vantagem, mas que é afinal terra armadilhada. Aos poucos fui me refugiando no meu corpo, do meu corpo. Combato já só na metade (para ser rigoroso já é menos que isso) que ainda sobrevive, na parte do meu corpo que agora irei habitar, a que resta, e à qual me agarro desesperadamente. Mas, de inconcebível, é o meu próprio corpo que(m) me quer abater. Não é um espectáculo bonito de se ver, e não tem qualquer sentido deixar aqui uma janela para o espreitar. Há coisas que são mesmo para resolver só connosco (…) ”

Hoje, passados 126 dias sobre os catorze dias que então haviam passado desde o dia em que deixei de fumar, hoje, portanto, fingindo um já-quase-nada, afinal repito-me. Lérias! Que me repito sim, mas por entre-dentes, e repito-me palavra por palavra, articulada entre cada vírgula da vontade estafada que ainda me resiste. E todos os dias me repito. E em todos os momentos me repito. E em cada segundo soa em mim esta vontade repetida, esta quase obscenidade amorfa que já só se limita a tilintar: não! Agora mesmo continuo, exaustivamente, a repetir-me!


A norte, o belo

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A norte, quase sol

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“Solitando” pelas ruas de Dublin

Acabei de fechar a semana de trabalho que aqui me trouxe.

Agora perderei alguns minutos a escrever este post, como se esta fosse a unica forma de me ligar ao mundo de onde venho e para o qual regressarei brevemente. Mas serei franco, nao sao as saudades o que aqui me traz – nao porque nao as tenha, mas porque nao eh aqui que arriscarei cura-las. Serah talvez para ainda ser maior a distancia de onde venho, quando deixar estas palavras que servem de ancora, e me lancar de impermeavel (e aqui a chuva nao se pretende uma decoracao literaria; eh ao inves espessa e prosaica, como podera atestar quem conhece a irlanda por estas alturas), pelas ruas de Dublin.

Ha muito que nao me lancava assim de espirito esbugalhado a trotar quilometros e quilometros em ruas que se curvam, empinam, dobram, engordam e alongam-se numa infinidade geometrica distendida ao ritmo da furia com que galgo a cidade (nao importa qual), de tras para diante, de este para oeste, como se a quisesse mapear dentro de mim. Nao, nao se trata de preciosismo viajante; nao sao as pedras que meco, nem as esquinas que dobro se memorizam, nem a arquitectura por mais que mereca em mim se ressalva, nesta furia endiabrada com que me desloco pelo miolo destas cidades desconhecidas, mas as gentes – essa amalgama de vidas com que me cruzo, esses habitantes anonimos que devoro incessantemente com o olhar vasculhando as entranhas das suas vidas, inventado-as com a azafama que lhes vejo de fora. 

Calcorreio quilometros e perco-me em tanta gente. E eh preciso tambem que tudo se passe em zona distante da que conheco, pois eh assim que melhor alcanco as partes que visito por dentro, afinal essas a razao de tanta correria. E quanto mais estranho me sentir numa terra estranha (eh curioso: quase juraria que a expressao original eh irlandesa) de mais longe veem os trechos que assim a mim retornam. Eh curioso como preciso ir geograficamente para tao longe para conseguir revisitar esses ‘territorios’ que ja quase tinha esquecido. Ja nao viajava sozinho ah tanto tempo que quase nao me lembrava que eh assim que o faco melhor, caminhando apenas, pelo meio de coisas que desconheco em absoluto. Como se isso, o desconhecido, pigmentado de gente, fosse o banho catalitico das pequenas particulas de mim, jah quase nada, mas agora a descoberto, e adensadas, como se chamadas por forca do desespero de saber que em meu redor nada mais encontrarei que me conheca, a nao ser eu. E tantas vezes o esqueco. Eh bom viajar, e perceber quao importante eh por vezes podermos perder algum tempo com a nossa consciencia, sem o barulho das coisas familiares.

PS: Nesta terra o transito e caotico e os homens teem um imenso humor, no intervalo de tempo em que nao estao a refilar. A unica coisa que os separa verdadeiramente de nos e o teclado que usam. Desculpem-me por isso, pela falta de pontuacao.


E pronto,

Já guardei as fotos deles e não vejo assim mais nada que me falte na bagagem*. Agora só espero encontrar um cyber-café lá por perto.

Até breve, lá mais para o fim do mês

* tu? mas tu vens comigo!