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da mais trágica viagem marítima

Em boa hora deveria em mim ter acudido a suspeita, logo ali naquela primeira perna da viagem, de que nada de auspicioso nos havia sido confiado. Ainda a terra se lobrigava a bombordo e já se alevantava uma estridulosa lua redonda, prenha de luz de arranhar pálpebras, a impedir-me qualquer fugaz cochilar na escala que em sorte me calhara nessa primeira noite do marear. Como se agora, a natureza, só porque no mar nos acontece mais infinita, se arguisse do direito de reclamar dos prometimentos da boa segurança e demais propósitos da marinhagem. Pois assim nos lançámos, zarpando noite adentro, de olhos escorados por esse tão candente dejecto cósmico que, se por ali se lançava orbitado, mais não terá sido que com o propósito de nos contrariar um confortante dormitar ainda que por mais leve que fosse. Entretanto Lisboa ficou penumbra no jusante da luz e do vento e depois desapareceu, mais tarde foi a costa de Sesimbra quem se fez fio e já a Sines não a tocámos. Enquanto mergulhávamos no mar que levávamos por avante, a coberto desse luzir nocturno de amornar corpos e roubar almas, ai soubéssemos nós aí as agruras que este destino nos cozinhava e esta travessia nem riscada no mapa haveria ter sido ensaiada.

 largo sines

 

 

Gibraltar nunca deve ser contado. Não há homem com pejo de vergonha que não eleja ficar calado a confessar os açoites e tremores que aquele infundíbulo de terra escarpada nos inflige. Empurram-se ao vento e ao mar por aquele funil afora até não se cumprir no mundo mais que espuma e medo, que não há barco que não vire barcaça nem homem que não se amofine, que tal é o mar que se agiganta que o céu nos foge e a honra assim o segue pelas pernas abaixo. Passemos pois adiante, que outras escarpas mais decorosas se arranjarão para contar.

 

Dobrávamos então o cabo das gatas, aprestando-nos para tomar dois dias de largo e brada da proa quem por lá aprumava cabos: que eram imensas as bestas marinhas que dali avistava, monstraria de mares nem contados, ilustrava ele em convulsões de terror. Pois pouco durou a zombaria com que escarnecíamos de tal fraquejo e se no riso se trazia alguma humidade logo ali na garganta se nos secou. Uma dezena, arriscava um, que não, que logo no través se contavam mais e mais, um grupo tão vasto que as suas barbatanas corcovadas mais pareciam o horizonte serpenteado da terra que deixáramos pela popa. Baleias. Aterrados tirámos vela na tentativa de amaciar o movimento, debalde, que ali se encurvava aquela multidão informe, qual exército que se aprestava agora a aproar a esta nossa frágil embarcação. Uma hora assim andámos torneados pela matilha, ou manada ou que quiserdes chamar a tão aterrador magote de cetáceos. Quando por fim, inusitadamente, nos deixaram partir sem que sequer tivessem ensaiado virar a barca, nem tão por menos abalroa-la, éramos uma tripulação taciturna, pois que não havia modo nem palavra que servisse à gente que ainda guardava em si o espanto de lhe ver concedida uma segunda existência e da vergonha do medo, de tão partilhada, decidimos calá-la entre nós e para todo o sempre.

baleotes1

 

 

baleotes2

 

Que por pior que nos seja vivido ou contado sabe um marinheiro que nunca deve cogitar que “para mais que isso já não haverá que temer”. No virar do segundo dia da travessia navegava este vosso desditoso narrador no turno que lhe cabia. Pela ré o breu da noite num azul tão escuro que o mar não se desligava do céu, enquanto pela proa um ténue encarniçamento dobrava a linha do horizonte. Subitamente a noite calou-se, o vento sumiu e um pasmo sinistro acercou-se da embarcação. Um esquisito céu, pela minha frente, começou a retorcer-se de tal modo que enquanto me fixava para me fazer acreditar de tal prodígio já ele se tinha revirado de noite em dia. E não fora o que então proveio e por ali me teria ficado estacado até que algum dos outros me encontrasse com esse dispor embalsamado. Mas o mais extraordinário haveria de advir. Primeiro um clarão enorme, alastrando, depois uma linha de fogo rasgando-se, por fim, ronceiramente, uma enorme bola de fogo que emerge do fundo da terra aonde o mar já não chega, que o digo eu por saúde destes olhos que a emborcaram, e o inferno, que outra coisa mais não teria esclarecimento, tomou conta do mundo. Nesse pasmar, o mar falecido, quieto, eterno e sobre ele a nossa embarcação em tumba transfigurada, enquanto um fogo infernal se engrandecia pelo céu afora e num mar de azeite lançava os seus braços de brilho tépido, no vagar venenoso com que se fazia prestes a envolver-nos. Não sei precisar quanto tempo depois acudiu ao poço a restante tripulação, mas então o mundo voltara a ser aquele para o qual um dia houvéramos nascido. Não se contam monstros que não tenham corpo nem garras, nem se fala de infernos a quem nunca os contemplou e fiz-me sensato em conceder deles o juízo de ter cedido ao aconchego dormitar da alvorada e nisso me ter trazido a devaneios negligentes, pois que para ali havia sido designado não para outra coisa que não cuidar do nosso destino.

cabo das gatas

 

E tanto mar, tanta privação para aqui me concluir, a esta terra onde vim dar. Daqui nada vejo, que não há praia que se lance assim em pó tão alvo, nem mar com humor tão desmaiado que nem a mais ligeira correnteza ou vaga o baldeia. E se alguém ousar fazer-me acreditar que há na face da terra azul como este ou água tão cálida que nele nos termos ou dela sair não nos traz distinção, dir-lhe-ei apenas que volte por onde vim, que naufrague a alma no inferno da madrugada, que implore pela vida àquelas alimárias marinhas que peneiraram famintas ao nosso redor, que alcance as escarpas colossais que confundem o mar com o céu e quem de lá ainda assim saia com duração pois que tente ao corpo que certamente trará esfarrapado fazê-lo sobreviver ao luar da noite a riscar arrepios de sono nas pálpebras de quem carrega a aziaga sorte de tomar o destino da embarcação.

 formentera

 

Com bom conselho pois vos deixo então: ide por terra que para isso nos deram locomoção, arriscai pelo ar se a tanto vos levar a imaginação, mas a menos que arrisqueis mergulhar eternamente na demência ou pretendais cessar a vossa própria existência, não vos aventureis nunca por esse tenebroso mundo, que mais agigantado que o mar só o céu que lhe dá tecto e a amizade que se cose entre os homens com que por ele trilhamos. Sobra-me mar e ficam-me sempre aqueles com quem sobre ele padeci, que do resto nada mais valoroso haverá para contar.


delírios da pré-alvorada

grécia 2009Partir, mas partir a desimaginar portos, ancoradouros e tudo o que nos faça chegar, ir apenas, zarpar, vagabundear no sopro do vento, deitar borda fora a vontade, os horários e os planos no passar de uma vaga qualquer, adormecer no fio do horizonte e acordar com o rugir dos cabos, desinteressado do que virá a seguir, simplesmente partir, nem ir nem ficar, sem que importe seja verdade ou mentira, improvável, impossível ou inadmissível, largar todos esses ‘in’s engravatados na esteira revolta desse caminho de abrir mar, que só aí, verdadeiramente, quando o mundo nos engole e o tempo é uma distância adormecida e tudo o resto que era antes tão importante morre agora submerso na imensidão calada do mar, só aí encontramos a janela que nos deixa espreitar para dentro de nós.