Monthly Archives: Julho 2011

Com uma dobra nas palavras (*)

Aqui não há gente. Aqui as pessoas traduzem-se em números, visitas e audiências.

Aqui não há realidade. Aqui as palavras desenham-se em outdoors com significados sofríveis e cuidadosamente arredondados.

Aqui não existo. Aqui sou mero escriba do que eu julgo que sou.

Nada aqui é fiel ao sentido que tem. É um logro da realidade praticado num gaveto que arrendei na internet e encenado no conluio entre a vontade de escrever, o interesse de o ler e a compulsiva voracidade das palavras.

Escrevo na expectativa que convencerei alguém, para que alguém me convença que sou eu assim. Escrevo interrogações que afirmo para obter respostas que já conheço. E sigo palavreando por aqui, neste embuste de arquitectura ortográfica, de pormenores fantasiosos, de peças com que metodicamente constituo uma identidade e realidade que ignoro mas evoco ser a minha.

Poderia agora negar tudo, bastaria enumerar e trazer prova de todos os episódios que aqui se acumulam. Mas para isso teria de me consentir para além das palavras e isto deixaria de ser um logro. E nem tenho a certeza que o quisesse fazer.

Porque, convenhamos, pensar que nos podemos redesenhar, alisando pecados e enfatizando virtudes, tirando uma ruga aqui ou atenuando ali um recanto de mau temperamento, isso, isto, é um logro delicioso.

(*) em modo reload sobre um escrito de 2006


travessias

Em Julho de 2007 havia assinalado neste blogue os dotes marítimos dos meus filhos, no que estes se confundem com a própria natureza do homem, entregando à posteridade o seguinte apontamento sobre uma travessia nocturna entre Mallorca e Ibiza:

Esta travessia foi diferente das outras. Dividimo-nos entre adultos e crianças e pela primeira vez tive como companheiros de turno os meus filhos. Interrompidos do sono por vontade própria ali se sustiveram no poço durante horas a fio, embalados comigo pelo planar calado e escuro do casco.  De madrugada, enramelados, foram eles que hastearam o sol nas mãos enquanto deixávamos pela ré o silêncio cavo da noite.

Observo-os. Quase tão súbitos como a alvorada,  o Francisco fez-se homem e o Diogo bom marinheiro.

Três anos depois registei algures no meu PC o mar que entretanto se fora cumprindo. E reza assim o meu envaidecido apontamento de 2010:

Finalmente tenho novas do Francisco e do mar. Julho, em travessia pelo sul de França contam-me de lá. E de lá contam-me também, mais tarde, que o turno da noite foi dele, mas já sem mim e sem outros. Três ou 4 horas por diante no breu do mar, atento nas velas e no fazer disso rumo enquanto tios e primas se entregam ao sono, confiando-lhe o casco.

Reflicto na travessia de há 3 anos atrás e comparo-a: não há simbolismo nisto, há mesmo uma verdade concreta. Desta vez eu já não estava lá, os outros dormiam e ele cumpria uma perna de vela, sozinho, pela noite fora. Assim ir, a sós, pela cala infinita da noite – e sei do que falo – já não é mera questão náutica, que isso, mais que dos dotes de marinhagem, requer sadias doses de confiança e paz interna. Conheço muitos que nunca chegaram até aqui, até assim, tão adultos consigo próprios para nisto não precisarem de companhia.

É também sorte, e disso faço aqui elogio, ter um tio que lhe concede tamanha prova de confiança.

Vem talvez isto a propósito de outros mares por onde este mais velho dos meus agora se vai lançando, oficiando-se no desfraldar do velame, trimando cabos, lançando-se por diante com a tranquilidade de sempre. E se dos seus dotes de marinhar a vida eu já nem devo cuidar, resta-me clamar, ainda que em surdina, que bons ventos o acompanhem nesse futuro de que faz rumo.