amigos

Sigo, inflamado, a (v)lê-los. Tenho passado estes dias a destrinçar memórias que me estão tão próximas, e que assim de tão familiares me fazem estranhar não estarem vestidas com palavras provindas de mim. É extraordinário que tantos anos volvidos ainda possa encontrar um punhado de gente capaz de contar partes do meu passado, afinal o nosso, o deles, trazendo com desvairado rigor excertos da vida de ‘lá’ que já em mim se tinham desvanecido.

Percebo agora que podem passar anos e anos, até quase esquecermos que existem mas, súbita e acidentalmente – e inexoravelmente diria – acabam por emergir diante de nós com a mesma linguagem, os mesmos tiques, a mesma sensibilidade escondida, as mesmas tiradas irónicas, os mesmos arrufos de sempre de uns brumosos personagens que aos poucos vão ganhando contornos cada vez mais nítidos, até se tornarem tão próximos quanto a nossa própria infância, até impregnarem a nossa infância, ou melhor, até ela neles se impregnar quando os escuto assim, à distância de já tantos anos. E surpreendentemente, ei-los de novo, eles tão iguais, enfim tão iguais quanto eu.

Afinal, os meus amigos, nem todos terão partido assim de forma tão inapelável quanto o destino os quis levar, como em tempos terei afirmado. Afinal, ao contrário do que em tempos escrevi, não precisam ser muitos nem poucos, nem dependem do tempo que os intervala na minha vida. Basta que andem por aí, deixando traços da sua passagem que, sei agora, mais tarde, inevitavelmente, cruzarei. Uma palavra aqui, um imagem antiga, uma cena que se conta no folgar da conversa e eis que se reconstroem caminhos que me levarão até essa zona comum da memória, esse passado que ambos habitámos e que agora teimamos em explorar de novo.

E hoje, manter ainda ligações de amizade com aqueles com quem cresci há quase 30 anos, poder sentar-me com eles numa esplanada com a mesma espontaneidade com que antes o fazíamos, e ficar pairando a tarde inteira a refazer conversas e cruzar abraços é algo que reconheço como um singular privilégio. Durante a vida há muitas coisas que temos de reconstruir e linhas que nos vemos forçados a reinventar e espaços que violentamente teimamos em querer alterar, e no meio desse turbilhão que fazemos girar à nossa volta é bom que algumas pessoas permaneçam perto de nós, a lembrar-nos de quem somos, connosco, a recordar-nos de onde vimos.

Deixo-lhes em baixo isto que em tempos terei escrito. Uma mentira onde ousei insinuar que seria preciso espaço em nós para poder guardar amigos. Uma mentira que aqui escrita, assim escrita, lhes dá mérito. O mérito de não me terem deixado desabotoar-me deles.

Aos meus amigos!

Durante toda a vida desabotoei amizades. Eu que tão custosamente as junto em mim, incauta e irreflectidamente as deixei partir. E às amizades deve querer-se que elas aconteçam, e não que elas ‘desaconteçam’.

Uns deixei que simplesmente partissem, como navios na bruma, sem que nada fizesse por isso. Indolente, deixei que as miudezas do dia-a-dia, os novos compromissos, as gravatas que passei a vestir, a minha pele de homem adulto, se esquecessem de os trazer comigo, se esquecessem também eles de mim. Alguns revejo incidentalmente, e sempre ficam promessas de um almoço, de um telefonema que não chegará a acontecer, porque as verdadeiras amizades, essas, não se retomam assim.

Outros, perdi-os mais violentamente, e definitivamente. Assim me deixaram numa outra vida, numa vida sem eles, que estranhei, em que me estranhei, mas a que me fui habituando de novo. Que fado este que os fez partir assim, como se me impusesse a espaços ter de recomeçar-me de novo, outra vez sozinho.

E poucas foram as verdadeiras amizades que juntei como homem adulto. Posso facilmente contar uma boa mão cheia delas, mas não tantas quanto aquelas que deixei desaparecer. Não deixa de ser estranho que um homem, à medida que vai crescendo, que vai conhecendo mais gente, acabe por ter menos amigos.

Ou não será tão estranho assim. A amizade que mantenho com eles já não é a mesma. Há um cultivo de anos e anos que a transcende, que lhe dá uma identidade própria, para além de mim e dos meus amigos, e essa é uma parte que implicitamente partilhamos. E cruza-se nisso tanta coisa, tanta coisa indizível, que já não podemos provavelmente falar de nós e deles, mas de nós neles, deles em nós. E isso ocupa um enorme espaço.

Se calhar os amigos que deixámos de ter foram apenas o espaço que precisávamos ocupar hoje com os amigos que afinal temos. E provavelmente os amigos que hoje temos já não são quem procurávamos quando precisávamos de ajuda – são os que procuramos quando precisamos de nós.


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