hora do lanche

 

Não havia quem se orientasse naquele bairro. As curvas arredondavam-se todas tão da mesma forma e as zonas verdes sucediam-se tão erraticamente que seria quase certo que o incauto que por lá se embrenhasse na busca de uma qualquer rua com nome estranho arriscava ter de tirar-se de lá a reboque de um táxi. Isto se não tivesse a infeliz ideia de interrogar aquele bando de miúdos que ali se espojavam pelas escadas do prédio com ar de fazer coisa nenhuma. Nesse caso o infeliz haveria de escutar com ar atento e eternamente agradecido as simpáticas indicações que seriam algo como “em chegando ali abaixo perto da paragem é virar à esquerda, depois lá em cima quando apanhar o triângulo vira à direita e depois não tem com que enganar, vira logo na próxima de novo à esquerda, e sempre à esquerda que logo haverá de apanhar a avenida”. O homem partia então aliviado, agradecendo-se à miudagem tão simpática.

Depois o bando de miúdos recostava-se de novo nas escadas, placidamente, puxava dos seus cigarros cravados e ficava a aguardar. Uns dois minutos e lá vinha ele, meio esgrouviado, com o carro a acelerar irritações já. A desorientação era tal que normalmente quando passavam pelo bando uma e outra vez quase nunca se apercebiam das trajectórias circulares que ali os fariam rasar repetidamente. Um dos miúdos apontava o relógio e girava a roleta que circundava o mostrador para assim fixar os minutos que iam apostando; arriscavam-se estimativas de quanto tempo o pobre coitado se demoraria até nova volta. E de novo o carro, agastado de tanta curva, o homem lá dentro desvairado, carro e homem enganando-se interminavelmente no volteio do quarteirão. E mais uma. Entretanto alguns dos miúdos interrompiam-se para irem ao lanche, e que logo voltariam, que por ali se haveriam de encontrar, como sempre. Outros continuavam a apostar já não os tempos de passagem, mas o número de voltas que ainda veriam o pobre coitado por ali passar. As vítimas mais persistentes eram bem capazes de chegar a uma meia dúzia de voltas, mas em geral após a segunda passagem começavam a preparar-se para “dar de frosques”. Este era um movimento de grupo, quase instintivo e que não gerava muitas conversas. Todos já sabiam de antemão que a brincadeira teria de acabar assim, impondo uma mudança de local, o qual combinavam de forma desinteressada: “encontramo-nos então no quintal da Mariazinha?”. 

Instantes depois o carro haveria de parar por ali, provavelmente chiando pneus numa travagem enfurecida e o homem, espumando impropérios, haveria de acabar por lhes perder o rasto entre as sebes e muros de quintal. “olha, olha, hoje calhou-te a ti Zé, o homem está a bater à porta da tua casa”. Uma meia-hora depois começavam então a voltar, uns trazendo na mão uma ou duas carcaças trazidas do fim do lanche, outros simplesmente voltando do quintal onde se haviam escondido, reagrupando-se, que a tarde haveria de seguir lânguida, e com menos sorte até sem nada mais que a distraísse.

 


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