do outono e dos arrepios da vida

Um destes dias volto a afrontar a caneta, mesmo que dela nada se queira brotar. Emudecer é um aparente sentimento outonal, uma meia estação, um estado gracioso entre coisa nenhuma onde apenas nos sentimos bem. Mas as folhas não se suspendem na eternidade ao cair, o céu não se traça pelo ano inteiro com abertas de sol enfeitadas com arco-íris, os pássaros não chilreiam melodias no inverno. Assim também nós não calamos para sempre, porque nunca, nada, teremos para dizer. Esse nada-fazer nada-mudar é um estado transitivo que se pode transformar num ardiloso lugar que nos aprisionará docemente numa interminável permanência. Entretanto inexistimos, de braços gonzos e sorriso indolente, num sempre que nos amarra vontades.

Ai a vontade, essa puta preguiçosa, como se nos pudesse fazer saciar apenas no desfrute do prazer. Como se algo a pudesse qualificar que não apenas a cósmica razão de nos fazer sentir vivos, seja isso bom ou mau, ou que doa. Não há prazer na genuína vontade, mas apenas a vontade de ser homem. Poderia ser sempre assim, nessa tranquilidade de ouvir passarinhos, porque o outono (das emoções) é obscenamente jovial, é ser sem ter de ser, é o deleite sem que nada por ele tenhamos de remunerar, como se, o sentirmo-nos bem, enquanto estado de alma ascendendo à eternidade, fosse algo que quiséssemos habitar sem contraposto, e sem carne. E tantas vezes, tantos de nós, fingimos nele a nossa longevidade sem dele nos tentarmos a sair, assim, desistidos, levando-nos a habitar um outono bucólico como se um intervalo de coisa nenhuma, sem nós, sem nada, sem coisa alguma que nos importe ou incomode.

Que venha o inverno, e o verão, e todas as estações que dentro de nós trazem a exaltação, o desconforto, o desafio e a superação, essa complexa amálgama de humanidade que nos grita que risquemos, com arrepios de vida, na cal branca, “eu passei por aqui … mas já cá não estou”.

(nota-se muito que tenho andado a estucar paredes?)


4 responses to “do outono e dos arrepios da vida

  • Anónimo

    Zé, mais um poema! Digo poema porque leva e requer e exige tempo para assimilar o que escreveu!
    Imagino-o a estucar paredes e a escrever mentalmente o que depois saiu virtualmente neste post.
    Neste tempo de correrias e mil coisas para fazer e viver, até dói o peito ao respirar, escrever e ler as suas palavras é viajar…. até dentro. Obrigada.

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  • Maria do Céu Mota, como sempre, nesta tumba de palavras, é reconfortante ler os seus comentários. Em primeiro lugar porque são já quase o único feedback que recebo in-blog, depois porque são invariavelmente simpáticos. Não é que precise de ânimo para escrever, que isto é um estado de possessão, cujas pulsões (cada vez mais raras) eu não controlo nem provoco, mas porque me ajuda na ilusão de que alguém as lê.
    Obrigado eu

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  • Anónimo

    O Zé não tem escrito muito… mas quando escreve, escreve! Se calhar é isso… blá, blá, blá…. e soa tudo a oco. Pouco, mas bom. E não é uma ilusão: há sempre alguém que nos lê, que nos vê, que nos admira, que sabe que existimos. Não somos transparentes, nem mesmo virtualmente! Há sempre alguém que nos observa no que de melhor isso tem! Acredite!- já fiz essa experiência. Continue, por favor. Acredito num Portugal subterrâneo, num universo de portugueses que prima e luta e viva em defesa da qualidade de vida. Escrever assim como o Zé escreve é promover a qualidade de vida. O Zé tem qualidade de vida – é muito transparente!!! Céu Mota

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