O texto que se segue foi originalmente publicado na Olivesaria há umas semanas atrás. Há uma razão especial para o trazer para aqui hoje, mas essa, ao contrário do texto, já é mais dificil de partilhar. Fica a história.
Ao fundo da rua espraiam-se os bólides de madeira, quase duas dezenas. Estão pintados de todas as cores e imitam os carros do Fittipaldi, do Stewart, do Cevert, do Ickks, com um rigor quase ‘veneratório’. Em redor deles há uma multidão de miúdos e graúdos, tão tumultuosa como as que se vêm nas grelhas de partida das corridas que ali se imitam. Há razões para isso. Estes carrinhos de esferas são especiais e enchem o olho de todos os que se habituaram a vê-los como mais que mera tábua com rolamentos. Têm dimensões regulamentadas, inspecções técnicas rigorosas, cargas escondidas para dar lastro, ailerons, bancos e estofos de espuma, segredos na lubrificação dos rolamentos, mas sobretudo são um primor para os olhos assim todos aperaltados no início da Rua 5, debruçando-se sobre a descida que os fará competir. Já todo o bairro por ali sabe que em fim-de-semana de grande prémio haverá corrida de carrinhos de esferas, no domingo pela manhã, e por isso ali se juntam entusiasticamente para admirar a competição .
Após uma semana de treinos cronometrados ganham a primeira linha da partida os carrinhos de esferas vermelhos – são Ferraris. No da esquerda estou eu, embora receie que isso não se repare bem. Aceno aos meus irmãos mais novos. O outro, o mais velho, está atrás de mim na grelha e por isso vou-me virando para trás em provocações com a cabeça. Todos temos capacetes feitos dos barris de skip cujo topo abaulámos e onde rasgámos uma viseira que recortámos a x-acto, depois pintados na cor dos originais. O meu é vermelho e branco, como o do Arturo Merzario. Está calor e sinto-me distante do mundo com a visão assim estreitada pelo capacete e o cheiro químico a lavado dos restos de detergente. Naqueles breves momentos antes da partida ainda me pergunto se os meus pais, e os pais dos outros, ali na beira do passeio, saberão reconhecer-me assim tão equipado, logo ali, na pole position.
Depois fixo-me na bandeira que vai sendo levantada pelo Jaime, cinco, quatro, será que pus demasiado petróleo nos rolamentos?, três, dois, e tinha de ser logo hoje que a minha mãe haveria de descobrir que tinha ido ao óleo da máquina de costura, largada! Podem dar-se 3 impulsos apenas, é importante não esquecer senão será a desqualificação. Esta é a parte mais perigosa. Fixamos a mão no alcatrão e esticamos rapidamente o braço para embalar o carro, o primeiro já está, o alcatrão está morno e enquanto preparo novo impulso exulto por me ver livre das temíveis pisadelas com que os rolamentos nos trincam os dedos. Segundo impulso. Sinto de súbito um impacto por trás e isso faz-me perder eficácia no momento em que me ia esticar. Três, rápido que há que recuperar. Passam-me o Chico, meu companheiro de equipa e o João, transformado em Ronnie Peterson. Atrás houve ‘molhada’ e presumo que já não seguimos todos.
A pista é desenhada a giz com restos de estuque ao longo da rua de alcatrão que desce até às vivendas de lá debaixo. Ziguezagueia em toda a sua largura e aproveita cada obstáculo da forma mais escrupulosa possível. A próxima curva à direita é das piores, quase gancho, e devemos evitar derrapar os carros pois isso faz-nos perder demasiada velocidade. O João discute com o irmão o topo da corrida, logo ali ganhando-me alguma distância e agora sobem os dois pela rampa do passeio da casa dos corte-reais para descerem na outra a seguir, à frente da casa dos sabbo, e voltarem ao alcatrão. Agora é a minha vez e sinto o saltitar do empedrado onde batuca o martelar abafado das rodas de aço. Mantenho-me em terceiro. Segundo!, segundo!, o João foi desqualificado. Em cada curva há um fiscal de corrida – os nossos irmãos mais novos – que deverá levantar a bandeirola se algum de nós cortar os limites da pista. O João já foi! Entretanto sou abalroado por trás, o Nica pois claro, quem poderia ser mais! O carro derrapa, demasiado, demasiado, reequilibro-o ainda com o peso do meu corpo, em contrabrecagem, mas levo outro toque e sou empurrado para a berma da estrada. Parado. Passa um, passam dois, controlo a raiva e preparo o empurrão – nestas circunstâncias cada concorrente pode dar apenas um impulso para ganhar velocidade.
Mais de meia corrida e entramos agora na parte mais rápida. O Chico, largado, sózinho, vai ganhar, viva! O Nica e o Miguel disputam ferozmente o segundo lugar, mesmo antes de entrar na longa recta que os levará até à meta. O meu impulso foi bom e nesse embalo vou aos poucos recuperando caminho, enquanto reparo orgulhoso que algum público vai puxando por mim. E depois o imprevisto aconteceu. Os dois na minha frente engalfinharam os eixos de trás, acho que o Nica partiu mesmo a travessa de madeira do lado esquerdo. O Miguel acabou por dar um peão completo, mas controlou-o, forçou a derrapagem e conseguiu manter-se em pista e vai agora recuperando a velocidade com embalos do corpo. Eu venho atrás, de lá detrás, já menos atrás, já atrás. O Chico cortou a meta, levantou-se imediatamente do Ferrari e incita-me nestes metros finais. Zzzzzzzzz, quase em cima da meta, perante extasiados aplausos, consigo assegurar o segundo lugar e fazer a dobradinha. Foi a melhor corrida da época … e sem sequer usar o óleo da singer (uma novidade estimada, eléctrica já) da minha mãe.
[ Sinceramente não sei se eu e o Chico alguma vez chegámos a fazer a dobradinha, pouco importa aliás. Mas confirmo que estes dois pilotos da Ferrari foram os vencedores absolutos dos dois campeonatos que se realizaram entre as épocas de 1974 e 1975. O feito é ainda mais assinalável já que éramos os irmãos mais novos em corrida do tipo do Tyrrel e do tipo do Lótus JPS. Muito mais novos aliás. Quase 2 anos.]
Nota; janeiro 2011: Mas ganhámos. Durante uns anos continuámos a ganhar algumas outras coisas juntos, com a cumplicidade de sempre que aproxima dois pilotos da mesma equipa. No liceu, na mesma escola, na mesma turma, na mesma carteira. Um ano e depois outro e até outro mais. Depois separámo-nos e cada um seguiu a sua corrida. Nunca chegámos verdadeiramente a voltar a fazer a mesma corrida, mas acenávamo-nos ao longe, com a cumplicidade de dois bons amigos naquele território da pós-infância e dos sonhos. O Chico chegou primeiro ao final da dele. Um dia também eu hei-de cortar a meta e tenho a certeza de que nessa altura o hei-de encontrar de novo, aos pulos, a puxar por mim. Há sempre nestas ligações de infância – não há melhores amigos do que aqueles que partilharam connosco a explosão da vida – uma espécie de eterno retorno, ao fundo um abraço, estendido, a cumprir com o que ficou por dar.
29 de Julho, 2008 at 2:08 pm
ganda malha
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29 de Julho, 2008 at 2:23 pm
obrigado. e reincido nos agradecimentos já que deves ser presentemente o único leitor deste blog.
não tens tu também, mais navegador destes mares, a estranha sensação de estarmos sózinhos por esta net fora?
será que os avatares também vão a banhos?
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29 de Julho, 2008 at 2:52 pm
Eu nem tou cá, nem nada. Falta de consideração pelos outros leitores, é o que é.
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29 de Julho, 2008 at 2:55 pm
então eras tu a terceira visita do dia cat!? desculpa. é que estava longe de ter saber apreciadora de desportos motorizados
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29 de Julho, 2008 at 6:25 pm
Primeiro eu até gosto de automóveis e corridas. E aposto que tenho mais pistas que tu em casa.
Segundo eu sou é apreciadora da tua prosa. Aliás isso até vem em primeiro. E segundo e terceiro. Seja lá o que for.
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29 de Julho, 2008 at 9:27 pm
andas muito emotiva hoje :)
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29 de Julho, 2008 at 9:54 pm
eu do avatares não sei, e não fiz nada
do resto estás enganado. Para além da cat “ele” há outros leitores. Eu, contrariamente à tua militante displicência, tenho sitemeter e consulto. E chegam visitantes ao blog (buscas do google, claro)
o texto, sem rodrigos meus, está bem esgalhado.
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29 de Julho, 2008 at 10:26 pm
ok, corrijo. os únicos comentadores … que não foram a banhos
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30 de Julho, 2008 at 9:12 am
Apesar de nunca comentar, eu também sou uma leitora assídua do blog… Passo por cá de segunda a sexta feira (ao fim de semana descanso… :) ).
Confesso que o que me chamou atenção no blog foram as fotografias e depois continuei a vir visitar e ver o que se passa por aqui.
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30 de Julho, 2008 at 10:22 am
bem vinda Rita.
Saber que foram as fotos que aqui a ‘mantiveram’ é uma absoluta e inesperada afirmação tecnológica neste blog. Quem diria que tb aqui, palco acinzentado de palavras, se viria a ceder às imagem. coisa de tempos modernos digo.
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30 de Julho, 2008 at 11:41 am
Eu já sabia que ia levar na cabeça por estar a lamechar um tudo nada, mas eu posso, que sou gaja!
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30 de Julho, 2008 at 11:50 am
eu tb posso, pois sou autor de um “blog sensível” (JPT dixit)
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30 de Julho, 2008 at 1:12 pm
tanto mimo, Zé.
pois se é para os leitores descerem à praça, aqui está mais um.
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30 de Julho, 2008 at 4:47 pm
obrigado cláudia pois, sim, sou um pouco carente nesta coisa das escritas, quase poeta diria, quase poeta
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30 de Julho, 2008 at 5:28 pm
Eu, apreciadora da tua escrita e de automóveis, também ando por aqui.
Sou “apenas mais uma”.
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30 de Julho, 2008 at 5:50 pm
“quase poeta”, “blog sensivel”…tss,tss. Isso com a mão esquerda vai mesmo mal, hein?
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30 de Julho, 2008 at 6:12 pm
Karla, a ideia não era fazer uma contagem de espingardas, mas em todo o caso prezo muito por ver aqui gente que ainda* lê este blog (ainda não há hiperligação no teu nickname?!)
* Cat, este pormenor do ‘ainda’ pretende ser mais um trejeito comiserado pela minha condição sensível de blogger-poeta – a ver se com o retorno da direita a coisa fica menos abichanada
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31 de Julho, 2008 at 11:13 am
eu não queria ler o teu blog, mas…
ia a passar, tropecei, caí e decidi ficar.
só mesmo tu para criares um sitemeter dos afectos…
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31 de Julho, 2008 at 11:30 am
eu gostava mais nos tempos do sitemetergate. nao vou exagerar ao ponto de dizer que entao era mais macho. mas pelo menos era menos abichanado
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31 de Julho, 2008 at 12:07 pm
Já quase hora de almoço e o maneta nada de posts, é grave isto.
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31 de Julho, 2008 at 12:10 pm
Mas que lamechice vem a ser esta? é do braço???? ;-)
Portanto só p dizer q aqui fica uma assinalável excepção à minha auto imposta licença sabática de comentários.
Com muito esforço da minha parte raramente comento, em parte para evitar absurdas e porventura excessivas e desproporcionadas manifestações(porque, sim, tenho sempre a noção de que escrevo excessivamente!) e porque os “comentadores residentes” dão mais do que bem conta do recado…
Mas, para que fique devidamente registado e publicado, a minha singela pessoa vem aqui todos os dias (ou quase todos), com muito agrado.
Faxavor de contar +1 no sitemeter virtual dos afectos.
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31 de Julho, 2008 at 12:52 pm
Ainda não, (há hiperligação) Zé
Um dia destes, quando assentar arraiais, nesta nova vida :))
Já lhe sinto a falta. (De “blogar”, não da velha vida)
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31 de Julho, 2008 at 6:42 pm
ena o que vai para aqui de conversa
já agora, só para juntar uma pergunta, ainda que despropositada: eu escrevi uma historieta com carrinhos de esferas e glórias e aqui acaba-se a falar de sitemeters de afectos (eheh expressão porreira). mas o que é que tem o cu a ver com as calças??
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31 de Julho, 2008 at 6:45 pm
e tenho-vos a dizer uma coisa … no virar do 31 de Julho, este deve ser o único blog que ainda serve bejecas na esplanada, que o resto está tudo ao deus dará. então mas há maior demonstração de afecto (não fui eu que trouxe para aqui esta abichanada expressão, volto a dizer) que esta(s) ?
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31 de Julho, 2008 at 7:48 pm
olha, eu cá meti postais no meu!
Quais carrinhos???
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31 de Julho, 2008 at 7:48 pm
contrariamente ao que li alhures aqui naõ se apanha nada
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31 de Julho, 2008 at 11:26 pm
Quais postais Cat??? (essa merda da bandeira é para ver se me pões manso depois do achincalhamento?)
pois não JPT, está lá tudo. alhures
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31 de Julho, 2008 at 11:28 pm
(já viram, tenho aqui o Bill, num pós-fondue, de copo na mão e olhos amigos e não o consigo convencer a meter-se nas bocas? isto é uma grande perda para a net em geral ! digo eu)
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1 de Agosto, 2008 at 12:56 am
(a bandeira tava bem linda, viste?)
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1 de Agosto, 2008 at 1:43 am
vou procurar o registo bloguísticos de uns duelos F1 a sério – cevert/stewart que uns malucos dos blogs fizeram há uns anos
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1 de Agosto, 2008 at 1:44 am
“olhos amigos”? este blog está cada vez pior. Safa …
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1 de Agosto, 2008 at 1:57 am
olha lá, estava aqui a falar com a ana … há quantos anos é que já andamos neste ping-pong? queres ver que às tantas estamos a estabelecer alguma relação sentimental entre nós?
(posso levar o bill?)
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1 de Agosto, 2008 at 3:01 am
eu nem digo nada … se aquele bill que eu conheci já é levável ….
eu fico com a memória de um gabiru de microfone na mão, no casamento de uma afamada loura, inqurindo a todos “onde está o bill? onde está o bill?” A esse naõ se levava (pudera…)
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1 de Agosto, 2008 at 9:36 am
Mau, temos o caldo entornado…
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1 de Agosto, 2008 at 9:37 am
caraças mais a roseta rosinha
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1 de Agosto, 2008 at 9:39 am
caraças mais a roseta roxinha
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1 de Agosto, 2008 at 9:42 am
esta não está mal… fica esta
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23 de Janeiro, 2011 at 2:41 am
[…] outra vez a escarafunchar o blog. Hoje parei aqui, e acrescentei-lhe um […]
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